Exaustão, desânimo, angústia. As palavras representam alguns dos sentimentos atuais dos profissionais de saúde que trabalham diariamente, há um ano, no combate à pandemia da Covid-19 no Rio Grande do Norte. Uma luta sem descanso, que parecia caminhar para um cenário mais promissor, e novamente desandou, com aumento de casos e alta taxa de ocupação dos leitos críticos. Algo que lembra, para alguns profissionais da saúde, um cenário de guerra.
“Nunca fui para uma guerra, mas acredito que, pelo que a gente vê, não é muito diferente do que a gente está passando“, diz o médico André Prudente, que é diretor do Hospital Giselda Trigueiro, referência no tratamento da Covid-19 no estado, e também membro do comitê científico do RN.
“A guerra é quando a gente não tem descanso, tem que trabalhar incessantemente para que outras pessoas não morram e para que a gente também não morra. A gente tem que lutar todo dia pela sobrevivência”.
Nesta sexta-feira (12), o primeiro caso registrado da Covid-19 no estado completa um ano. E a situação está longe de ser a que se imaginava em março de 2020.
“Quando a gente olha para trás e vê que, depois de um ano, a situação está pior do que a de março passado, realmente é uma surpresa. É uma surpresa negativa, que deixa a gente bastante desanimado“, diz André Prudente.
André Prudente, médico infectologista e diretor do Hospital Giselda Trigueiro — Foto: Reprodução/Inter TV Cabugi
A sensação mais citada pelo médico é a de desânimo. Trabalhando todos os dias desde o início da pandemia, ele lembra que nos primeiros meses havia uma comoção coletiva para o isolamento social e até as empresas atuavam com doações importantes a hospitais e profissionais da saúde, demonstrando solidariedade e compromisso com o momento.
“Foi passando a pandemia e as pessoas perderam um pouco esse sentimento de compaixão. E aí passaram a se aglomerar. Nas eleições no ano passado, na campanha, nas festas dos eleitos. Depois, as festas de fim de ano e, por último, o carnaval”, critica.
“A gente vê que as pessoas perderam a compaixão pelo próximo. Elas se reúnem sabendo que têm risco. E que podem passar para outras pessoas. E que vão pressionar os profissionais de saúde, que há mais de um ano trabalham diariamente”.
O diretor do hospital acredita que falta consciência coletiva. “A gente fica desanimado porque vê que a população na verdade não acredita nas medidas que podem conter a pandemia, justamente o distanciamento social, tendo que ter decretos pra isso. E aí, quando tem decreto, as pessoas criticam, sendo que a gente sabe que, se tivesse consciência, nem precisaria de decreto. Se não tivesse aglomerações, a pandemia estaria numa situação bem diferente“.
O cansaço do trabalho não é só físico, mas também emocional. É lidar com pacientes graves e óbitos dentro da rotina. E também com a falta de vagas de UTIs, cenário que voltou a acontecer neste mês de março no Rio Grande do Norte. Segundo o Regula RN, na noite de quinta-feira (11), o RN tinha 97,1% dos leitos críticos ocupados.
E não há como tirar a humanidade de quem lida diretamente com a vida, lembra o médico. “Cada paciente que a gente perde é como se a gente perdesse um pedaço da gente. Principalmente pacientes jovens, porque a gente sabe que teria muitos anos pela frente e que a morte poderia ter sido evitada se não fosse a pandemia, se não fossem as aglomerações”. Mais da metade dos pacientes em UTIs atualmente tem abaixo de 60 anos, cenário diferente da primeira onda.
Leitos de UTI Covid-19 Hospital Belarmina Monte, em São Gonçalo do Amarante: ocupação de leitos críticos está acima de 95% — Foto: Ariel Dantas
O diretor diz que dói também ver histórias de parentes acometidos pela doença que morrem com poucos dias ou horas de diferença. André Prudente conta que uma das situações que mais o comoveu foi a de um casal que ficou intubado ao mesmo tempo no hospital.
“Eu tive uma experiência que eu nunca me esqueço de estar uma pessoa internada grave na UTI e a esposa na mesma UTI. E a esposa faleceu. Ele estava grave, mas começou a ficar lúcido, saiu da ventilação mecânica, e perguntava pela esposa. E a gente não podia dizer que ela já tinha morrido, porque isso pioraria a situação dele. Então era bem angustiante ele perguntar pela esposa e a gente ter que driblar a informação até chegar o momento de contar que a esposa não tinha sobrevivido”, disse.
“O choro dele me marcou muito. Nunca esqueci, porque foi um choro, apesar de ser uma pessoa de quase 80 anos, foi um choro de criança. Ele estava perdendo a companheira da vida toda, por causa da pandemia”.
E também é preciso lidar com rostos conhecidos. “Nesse momento eu estou acompanhando três amigos na UTI, por exemplo. Muitas vezes foi complicado falar com a esposa, que a gente conhece, e dizer: ‘Olha, a situação não está boa’. É mais difícil ainda por ser amigo”.
O médico André Prudente vê o atual momento da pandemia como o mais preocupante no que diz respeito à ocupação de leitos críticos, mas acredita que houve uma evolução em relação ao tratamento dos pacientes em comparação com o pico da primeira onda, entre maio e julho do ano passado.
Hospital Giselda Trigueiro, em Natal, é hospital de referência no combate à Covid-19 — Foto: Sérgio Henrique Santos/Inter TV Cabugi
“Em algum processo, esse é o pior momento sim, porque, apesar de os leitos terem sido ampliados, a demanda ainda é muito grande. Por outro lado, a gente passou maus bocados no início da pandemia, principalmente em maio e junho, porque era tudo novo. A gente não entendia muito bem a pandemia. Estávamos aprendendo a manejar os casos graves”.
“Provavelmente não morreu mais gente porque agora a gente sabe manejar um pouco mais: o momento certo de intubar, a quantidade de oxigênio, colocar a dose de medicamentos necessários em estados graves”.
Além da fila para leitos críticos, o médico se preocupa também com os equipamentos e insumos necessários, já que a pressão no sistema de saúde acontece em todo o Brasil.
“Isso faz com que os fornecedores de medicamentos, de materiais como respiradores, monitores, bombas de infusão, estejam saturados também. Então, eles não conseguem atender a toda demanda do país. Isso pode trazer algumas dificuldades em semanas, porque os fornecedores não têm capacidade de produzir todo material necessário. Isso nos preocupa nesse momento”.
Em um ano desde o diagnóstico da primeira paciente, o RN registra mais de 178 mil casos confirmados de Covid-19 e tem mais de 3,8 mil mortos pela doença.
Veja relatos de profissionais de saúde que atuam na linha de frente contra Covid-19
Mirelly Kívia Souza, enfermeira no Hospital de Campanha de Natal
“Diariamente nós vivemos situações que nos tocam e nos sensibilizam uma mais que a outra, porque a gente sempre se coloca no lugar: poderia ser eu, meu pai, meu irmão, o amor da minha vida. Qualquer um deles. Quantas vezes, num plantão, a gente não vê pacientes segurarem a nossa mão e pedir pelo amor de Deus para não serem intubados, para que não deixemos ele morrer, para que a gente faça de tudo pra que ele tenha uma segunda chance”.
Mirelly Kívia Souza, enfermeira que trabalha no Hospital de Campanha de Natal — Foto: Reprodução
“Não é preciso se abster do mundo, mas é preciso estar no mundo e ter as medidas necessária de higiene e de segurança. Não só em prol de si, mas em prol do outro. Porque não é fácil pra nós profissionais todo dia sairmos de casa e retornarmos na seguinte dúvida: ‘será que é hoje que eu vou me contaminar e posso contaminar a pessoa que eu mais amo?’. A gente vai trabalhar e volta pra casa com essa incerteza. Isso não tem nos parado, mas é difícil conviver com essa incerteza. Nosso maior apelo é que a população entenda que de fato existe um inimigo e que ele se chama Covid-19″.
Hirai Alencar Gurgel, socorrista do Samu
“No início da pandemia, eu transportei muita gente para hospitais com a Covid-19. Em momento algum eu me via na situação de ser transportado também com essa doença. Apesar de todos os cuidados que nós tínhamos com a paramentação, com a higiene, infelizmente eu fui acometido da doença e passei 22 dias na UTI, sendo nove deles intubado. Tive essa experiência e depois disso minha vida mudou totalmente. Aprendi a valorizar mais a vida, as pessoas e, principalmente a família, que é o que faz com que a gente repense tudo. Minha família foi meu braço forte na recuperação. Hoje a gente vê a pandemia com outros olhos. Ela está aí, não deixou de existir”.
Hiraí Alencar Gurgel, socorrista do Samu em Natal — Foto: Reprodução
Wanda Gomes, copeira do Hospital Giselda Trigueiro
“Uma coisa que me chamou a atenção neste ano (2021) é a idade das pessoas e a quantidade de pessoas intubadas. O setor onde eu trabalho tem 22 leitos e antes esse setor tinha uma quantidade de pessoas em que a maioria se alimentava via oral. É chocante hoje, um ano depois, lidar com isso, com o setor lotado. Desses 22 leitos, eu levo alimentação pra cinco. Infelizmente, os demais estão intubados. Porque, infelizmente, hoje você tem um número muito maior, a doença é muito mais grave”.
Wanda Gomes, copeira do Hospital Giselda Trigueiro, em Natal — Foto: Reprodução
“É como se a doença fosse mais avassaladora, mais agressiva, e ela levasse as pessoas a uma situação mais difícil de resistir a ela. Existe dias que você sai arrasada dali. Diariamente existe luta, luta de uma equipe, de diversas pessoas para tentar salvar vidas, fazer diferença na vida de muitos”.
Mércia Suassuna, socorrista do Samu no Hospital de Campanha
“Sigo firme e forte nessa luta. Após um ano de início de pandemia, um ano atuando como profissional de linha de frente, hoje eu estou me sentindo cansada. Os plantões não estão sendo fáceis. A cada dia esse vírus está acometendo um amigo de um amigo, um familiar de um amigo. Não perdi nenhum familiar pra esse vírus, graças a Deus, mas perdi pessoas do meu convívio. Perdi amigos de profissão e tem os nossos pacientes, que a gente também sente pela perda. Eu me solidarizo com todas as famílias que já perderam familiares até hoje”.
Mércia Suassuna, socorrista do Samu no Hospital de Campanha de Natal — Foto: Reprodução
“Um ano depois de pandemia, onde nós estamos? Mais uma vez em uma UTI superlotada, com pacientes gravíssimos e sem prognóstico. Isso tem consumido muito nós profissionais da saúde. Hoje nós nos vemos em um beco sem saída. A variante do vírus não está poupando ninguém. Desde o mais idoso ao mais jovem”.
Ana Paula, fisioterapeuta no Hospital Regional de João Câmara — Foto: Reprodução
“Paralelo a isso, nos alegra saber que devolvemos o amor de alguém de volta para sua casa, seja um avô, uma avó, um pai, uma mãe, um filho que voltou para o seu lar. Toda vez que eu chego na UTI e me deparo com o paciente intubado, morre um pedacinho de mim. Eu não aguento mais ouvir os pacientes dizerem: ‘doutora, não me deixe morrer, me ajude’“.
Maria Aparecida da Silva, assistente social
Maria Aparecida da Silva, assistente social — Foto: Reprodução
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