Discutir ciência está proibido no debate sobre a covid-19

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(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 26 de janeiro de 2022)

De todos os desastres, alguns sem mais conserto, que a covid-19 trouxe nestes dois últimos anos ao mundo e ao Brasil, um dos mais perversos, sem dúvida, é a degeneração universal da ideia básica de ciência. É inevitável que aconteça: o debate científico aberto, condição indispensável para avançar na busca do conhecimento, está em grande parte proibido. É uma volta mortal aos tempos das trevas, quando a verdade era estabelecida em decreto pelos reis, papas e seus amigos — e não pelo estudo e pelo entendimento das leis e fenômenos naturais. Hoje a ciência, pela ação cúmplice de cientistas de ocasião, funcionários da máquina estatal e oportunistas de todos os tipos, está se transformando em política — serve a ideias, interesses e desejos, e não mais aos fatos.

Todo o mecanismo mental que comanda a ação atual da máquina pública no trato da epidemia — basicamente, um sistema de repressão à liberdade e aos direitos individuais, com o apoio apaixonado da mídia — se baseia na guerra à ciência. Não é que haja dúvidas entre várias hipóteses e o Estado, através de algum processo democrático, tenha optado por uma ou por algumas. Não é isso. No Brasil, premiadas com poderes praticamente absolutos pelo Supremo Tribunal Federal, as “autoridades locais” atribuíram a si próprias o direito de definir o que é ou não é ciência. Ao mesmo tempo, e sem deixar espaço para nenhum questionamento, decretaram que é proibida a não concordância com as suas decisões e “protocolos”; ou você engole o pacote como eles querem, ou estará se colocando “contra a ciência”. É um charlatão, um inimigo do interesse comum e um “negacionista” — mesmo que seja um cientista com 30 anos de experiência em pesquisas e tenha dito ao fiscal da prefeitura que seria bom estudar um pouco mais isso ou aquilo. É a ciência imposta através de portarias.

Qual a condição, por mínima que seja, de um prefeito, juiz de direito ou procurador — ou mesmo de um ministro Barroso, ou coisa que o valha — discutirem de verdade alguma questão de ciência? Não sabem nada; o que podem dizer de útil sobre o tema? No que diz respeito à ciência, e no que se refere especificamente ao ministro Barroso, é um fato a sua devoção ao curandeiro João de Deus, hoje condenado por estupro e fraude. Que raio de credencial é essa, em matéria de relacionamento com a ciência? Alguém acha que os 6 mil prefeitos e 27 governadores que estão aí são melhores que ele? Por quê?

A ciência, para ser ciência de verdade, precisa não do ministro Barroso e na manada de pequenas autoridades que manda hoje na sua vida, e sim da investigação livre dos fenômenos que podem ser observados pelo ser humano — senão, não é ciência nenhuma. A ciência precisa, o tempo todo, do debate livre, da indagação permanente, do questionamento aberto, da prova objetiva. Isso está proibido hoje no debate sobre covid-19 — a verdade é uma só, e ela vem numa portaria assinada por um analfabeto qualquer que se encontra num cargo público. Voltamos ao tempo de Galileu, quando era a Igreja que definia quantos graus tem o ângulo reto, ou garantia que o Sol girava em volta da Terra — com a desvantagem de que a Igreja, por pior que fosse, não era tão ruim quanto o sistema judiciário brasileiro, ou essa multidão de nulidades que se promoveram, do Oiapoque ao Chuí, ao emprego de Deus na Terra. Mas qual é o problema? É assim que se combate, hoje, pelas instituições democráticas e contra a onda direitista.

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